Um povo sem
memória é um povo sem história, e um povo sem história é um povo sem futuro.
Claro que os caminhos que têm conduzido as torrentes do passado não têm
sido fáceis, principalmente aqueles que se conseguem descortinar à distância de
algumas dezenas de anos. Nem sempre se deu a melhor direcção aos reais anseios
das almas e nem sempre se escolheram as estantes mais conformes para guardarem
as memórias de que tanto o homem precisa, principalmente da sua vivência em
comunidade. Quantas vezes, necessidades enganadoras têm deixado arder traves e
outras peças que têm suportado forças e certezas que já não comungam os nossos
dias. Quantas vezes se têm desconstruído memórias e queimado vestígios, apenas
para se construírem estranhezas, faltas de sentido e estátuas balofas.
Se fizermos uma intromissão por qualquer um dos lugares e aldeias deste
nosso rectângulo à beira mar estendido, verificamos que, muitas vezes, o
passado foi e continua a ser ignorado, estripado e pilhado, isto é, tem sido
atirado, por alguns, para uma desconstrução que mete dó. E esta situação
acontece apenas porque a ignorância, a ganância e a insensibilidade de certos
senhores sem visão assim o permitem. De facto, é mais fácil destruir um moinho
de água com mais de cem anos, retirando-lhe as pedras que o suportam, para as
plantar num outro sítio qualquer, ou mesmo desventra-lhes as suas entranhas,
para colocar as suas peças num jardim sem sentido, do que o preservar na sua essência.
Sem sombra de dúvida que para muitos uma estrada deve ser rasgada por sítios
onde moram marcas da história, como sepulturas milenares, por exemplo, abalroando-as,
só porque o futuro parece ter fome desta maleficência. Claro que é muito mais
económico, e até mais engraçado, esconder por debaixo do cimento agarradiço, ou
esconder sob cores quentes fachadas e muros repletos de passado, do que pegar
com carinho e memória em todo esse legado e recuperá-los fielmente. Sem sombra
de dúvida que é muito mais fácil atirar para um qualquer recanto escondido
utensílios domésticos, agrícolas e industriais, já considerados arcaicos, e
deixá-los enferrujar e apodrecer, encostados à passagem dos anos, do que os preservar,
como se fossem pedaços sentidos de outras eras.
Também é de lamentar a maneira como todo um património imaterial permaneça
numa escuridão e silêncio voraz. Hoje dificilmente se transmitem histórias,
lendas e dizeres populares aos nossos descendentes, só porque este nosso
presente parece não precisar deles. Aquelas rezas, mezinhas, lengas lengas,
receitas e outros registos, que tanto esperançaram os nossos avós, já não se
aquecem às lareiras de inverno, só porque as televisões e os computadores têm
mais brilho. Bem, estes exemplos são apenas uma ínfima parte de muitas atrocidades
que se têm vindo a fazer para apunhalar o que continua nosso. Um alerta bem
assinalado tem de ecoar em todas as direcções para que se consciencializem
todas as mentalidades para a necessidade de não ofuscar o que muitos chamam de velho
e inútil, e que afinal é ainda necessário ao homem. Claro que não estamos a pedir que se ignore o
progresso e permaneçamos a lavrar os campos com parelhas de bois ou a malhar o
milho e o centeio nas eiras, da mesma forma como se fazia há cem anos. Não, o
que aqui é pedido é que não se esqueça aquele antigamente, que também já foi
moderno, e trouxe conforto e progresso aos nossos antecedentes. Os nossos filhos têm de continuar a saber
como os caminhos se têm suportado ao longo das eras. E, mais a mais, ao
estarmos a incentivar a presentificação do nosso passado, estamos a
salvaguardar a preservação do nosso presente, que um dia deixará de ser prático
e fará parte das memórias dos vindouros.
Felizmente que nem tudo é desleixo e insensibilidade. Se prestarmos um
pouco de atenção, já podemos encontrar pessoas que se esforçam por preservar e
manter ao relento os pedaços de um outro tempo. Já me aconteceu entrar num
restaurante típico e sentir uma aquietação que me contentou. Em torno de toda a
sala, e numa decoração interessantíssima, dezenas de objectos, aparentemente de
museu, estavam ali, hirtos na sua dignidade, lado a lado com as modernidades
que se espalhavam nas mesas e cozinha. Uma candeia de azeite, pendurada de uma
trave esfumada olhava com orgulho e estima para um candeeiro a gás bem
preservado, enquanto um foco, produto do nosso presente, lançava do sobrado um
feixe de luz que os destacava. Mais junto à porta de uma segunda sala, três
cantaras de lata, vazias de água, mas repletas daquelas vozes ariscas que
escutaram nas fontes, encostavam-se a duas almotolias besuntadas e sorridentes,
enquanto uns potes de ferro, escondiam no seu redondo arcaboiço aquele sabor a
toucinho cozido. E por aí fora… Este é um exemplo de como é possível manter a
nossa memória sem apunhalar o presente que nos suporta.
Muitas são as soluções que podem ajudar a não desconstruir a memórias.
Museus ao ar livre e espaços temáticos podem permitir visualizar histórias e
lembranças, recordando às nossas crianças o porquê de certas realidades, assim
como explicar-lhes saberes, e gostos ancestrais. Fazer esforças para que os
nossos monumentos não se degradem e implementar medidas que aticem as nossas
raízes para que muitos espaços corroídos pelo desprezo se voltem a erguer de
uma morte anunciada e voltem a beber o sol de cada dia. Promover eventos
culturais que enalteçam o nosso folclore e tradições, como o que aconteceu
ainda recentemente em Fafe com o espectáculo Memórias de um Povo, fornece matéria-prima para continuarmos a
usufruir de um passado que ajuda a acordar o presente e a perspectivar o futuro.
Incrementar exposições, levar as nossas escolas a roçar-se com a tradição,
incentivando o estudo da literatura oral e o contacto com p país profundo, pode
ajudar a olhar para trás com respeito e com a convicção de que esse gesto é um
bem necessário.
O homem não pode esquecer que são
as suas memórias colectivas como povo, como comunidade, que o definem e que o
enobrecem aos olhos dum mundo que gira em torno de muitas incertezas e
horizontes indefinidos. São os seus pequenos pedaços de antigamente, as suas
tradições, usos e costumes o seu maior legado para o acordar das manhãs
vindouras. É bom que se acredite que se o planeta terra quiser continuar a
contar com o único ser pensante que se passeia pelas suas encostas e vales não
pode olvidar de espalhar por todo o lado a necessidade de acreditar nos
passados que cimentam os empedrados da história.
Jamais os futuros ansiados desabrocharão das
vivências do presente se o homem cerrar os olhos à verdade que a natureza nos
oferece e acabe por desconstruir a sua memória: é do entranhado das raízes que se alicerça a robustez das árvores,
permitindo que a rotineira Primavera as engalanei de cor e daí advenham os
frutos mais suculentos.
Carlos
Afonso
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