Carlos e histórias
SÁBADO, 23 DE JUNHO DE 2012
O homem que veio de Fafe
(Dedico esta história à ATRIUMEMÓRIA e ao seu principal obreiro, Jesus Martinho, no primeiro aniversário desta associação, para homenagear o incessante e profícuo trabalho que tem sido feito em prol do património fafense)
Num ancestral carvalhal, bem nas profundezas das terras de Montelongo, existia uma antiquíssima pedra, quase totalmente escondida do olhar dos homens. Apenas um velho pastor lhe emprestava, de vez em quando, a sua atenção, quando por ali passava à procura das suas memórias, e nela se sentava a tocar a sua flauta. Bem encostada às faces carcomidas desta pedra, apenas musgos seculares lhe favoreciam a sua função de assento.
Por muito que o povo dissesse que, noutras eras, tinha andado por ali um grande rei mouro com o seu exército, e que por ali havia construído um forte castelo, onde escondera um vasto tesouro, nunca ninguém, à exceção do velho pastor, procurara quaisquer indícios. Apenas aquele velho pastor olhava para aquela pedra com respeito e com a certeza de que ela era a guardiã de um passado grandioso. Mesmo que de vez em quando ele partilhasse as suas conclusões com as gentes que habitavam aquelas redondezas, nunca ninguém lhe dera ouvidos, bem pelo contrário. Limitavam-se a olhar friamente a pedra, sorriam em tom de desdém, ignoravam-no e seguiam os seus destinos. O pobre velho nunca foi levado a sério e até começou a ser chamado como o louco da pedra. Sozinho com as suas lembranças, limitava-se a andar por ali na companhia da sua flauta e dos seus segredos.
Numa tarde de calor, num daqueles verões tórridos que também acontecem no Minho, o velho pastor regressara ao seu lugar de eleição e sentara-se, como muitas vezes o fazia, à sombra dos carvalhos, na tal pedra, tocando a sua flauta. A dada altura, e como que o velho o esperasse, apareceu à sua frente um homem alto, vestido de escuro e vinha dos lados de Fafe. Pela convicção que derivava do seu andar, dava para concluir que ele vinha tomado de um sonho bem definido. Como ouvira falar da tal lenda do castelo dos mouros, e porque acredita nos sinais do povo, trouxe o seu espírito observador e sábio, a sua máquina fotográfica e veio na demanda de mais uma possível riqueza patrimonial. É evidente que este homem da cidade, um homem para quem o tempo é um guardador de tesouros à espera de serem descobertos, se agradou da originalidade do quadro que se deparava aos seus olhos e ouvidos.
A música que derivava da flauta parecia-lhe divina. O velho que a tocava lembrava-lhe um deus maior. A pedra onde este se sentava tinha, no seu entender, os requisitos de uma torre de um forte castelo. Perante este cenário tão especial, o procurador de memórias, vamos chamar-lhe assim em homenagem à sua importantíssima acção em favor da cultura do seu povo, encantou-se com esta sua descoberta. Como era de prever, e numa atitude completamente diferente de todas as outras pessoas que ignoraram a pedra e o tocador de flauta, este homem que veio da cidade, sentou-se ao lado do velho e escutou com toda a atenção do mundo os segredos que ele lhe contava. O pastor estava satisfeito, pois soube reconhecer no seu interlocutor a verdade das suas intenções. Por isso, contou-lhe tudo o que sabia e o que imaginava. Finalmente, ele encontrara um homem que sabia escutar.
Algumas horas passaram e só a noite os separou. Mas, e antes de seguirem os seus caminhos, marcaram um novo encontro, para ali mesmo, junto à pedra, para a manhã seguinte. No céu, as estrelas mais apressadas fizeram-se notar, e o canto de um melro perdeu-se na aragem.
A manhã acordara bela e repleta de sol. A passarada enchia de movimento e melodia todo o carvalhal e o homem que veio de Fafe foi o primeiro a chegar. Sentou-se na antiquíssima pedra e esperou, esperou… mas o velho pastor nunca mais chegava. Passaram algumas horas e nada. Sem perder o ânimo, e como o seu recente amigo estava a demorar, achou por bem reparar com mais força na antiquíssima pedra e continuar a esperar. Ao de leve, levantou-se, começou a acariciá-la com as suas mãos curiosas e atentas. Numa visão mágica, notou em algo de extraordinário. Sem pressa, limpou com cuidado o musgo que cobria a pedra e viu com os olhos que Deus lhe dera um aglomerado de palavras gravadas em toda a sua dimensão da mesma. Animado com o que descobrira, tentou decifrá-las, mas sentiu dificuldade. Só mais tarde é que conseguirá compreender o real sentido de tão feliz achado e que aqui reproduzimos, desde já: ”O maior tesouro de um povo são as suas memórias”.
Sem parar, e como o velho pastor ainda não dera sina de vida, o homem de escuro vestido e que veio da cidade, pegou mais uma vez na sua persistência e no seu gosto por tudo o que cheira a passado e património e começou a limpar em redor da pedra, e o que achava a cada momento mais o encantava e desafiava. Um mundo maravilhoso começou a crescer à sua volta e o seu coração a crescer na direção do céu.
Afinal, o tão falado castelo dos mouros sempre existia e o dito tesouro também. Dos lados do poente um som fascinante de flauta fez-se escutar e o homem vindo de Fafe sorriu.
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(Nota: Caros leitores, afinal o Castelo dos Mouros sempre ali estivera, no meio daquele frondoso carvalhal, o problema, e tal como acontece ainda hoje por estas terras de Montelongo, os comuns mortais nem sempre sabem olhar os indícios que se passeiam à sua frente. Infelizmente, a névoa que lhes tolhe o entendimento nem sempre os deixa escutar os sinais, ou sentir a fala das pedras, ou perceber os desenhos dos montes e até nem os deixa compreender as verdadeiras histórias do nosso povo. Para salvar o nosso património, meus amigos, é preciso estar atento e ter as mãos e a mente lúcidas e argutas, tal como o homem que veio de Fafe.)
Carlos Afonso
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